Deputado Arthur do Val compartilhou áudios nos quais se ouvia afirmações atrozes sobre as mulheres ucranianas
No dia 11 de abril, o Conselho de Segurança na ONU debateu as consequências da Guerra da Ucrânia no tocante às mulheres e às crianças. Dessa forma, a chefe da ONU Mulheres salientou a dimensão de gênero do conflito, em razão dos relatos crescentes de violência sexual e tráfico de pessoas[1].
No dia seguinte, em São Paulo, o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Assembleia Legislativa do Estado aprovou a cassação de mandato do deputado Arthur do Val, vulgo Mamãe Falei, que após recente viagem à Ucrânia compartilhou áudios chocantes com seus amigos, nos quais se ouvia afirmações atrozes sobre as mulheres ucranianas refugiadas, destacando sua vulnerabilidade (“a fila das refugiadas, irmão. Imagina uma fila de sei lá, de 200 metros ou mais, só deusa”) e as possíveis vantagens sexuais que poderia obter a partir disso (“são fáceis, porque elas são pobres”), em meio ao terrível estado de calamidade causado pela atual guerra.
As falas expostas, bem como tantas outras proferidas na internet sobre as mulheres ucranianas em refúgio, trouxeram ao público um debate bastante sério sobre a vulnerabilidade da mulher em contextos de guerra e a amplitude — e descaso em relação a — (d)os crimes sexuais nestes mesmos contextos.
Em cenários de crimes internacionais, as atrocidades cometidas comumente compreendem também casos de violência sexual sistemática, a qual gera lesões graves à integridade física e psíquica das vítimas, especialmente de mulheres e meninas[2].
Nas guerras, os estupros são utilizados como um instrumento de terror e em níveis assustadores. Historicamente, existem inúmeros relatos de estupros, escravidão sexual, mutilação sexual e outras formas de violência sexual em períodos de conflitos armados. Assim, os estupros constituem uma parte fundamental do ataque ao grupo adversário. Além disso, as evidências demonstram que o gênero também reflete na forma que as mulheres são mortas em contextos de conflitos armados: geralmente os meios de execução da morte violenta são sexualizados, com mutilação de órgãos genitais e violência sexual[3].
A Segunda Guerra Mundial, por exemplo, produziu experiências de extrema brutalidade e horror. Porém, a extensão da violência sexual cometida apenas foi publicizada no âmbito público nas últimas décadas. No Tribunal de Nuremberg (1945) nenhum caso de estupro foi inserido nos indiciamentos, apesar da farta documentação demonstrar a ampla utilização da violência sexual. Portanto, tais crimes somente começaram a ser processados e julgados nos tribunais penais internacionais a partir da década de 90, com o estabelecimento dos tribunais ad hoc para a antiga Iugoslávia e Ruanda[4].
A partir desses julgamentos, um grande avanço foi o entendimento de que o estupro é uma prática que pode ser usada como tática/arma da guerra, ou seja, não é apenas um efeito indissociável da mesma. Assim, em vários conflitos ocorre a utilização, por grupos armados, do estupro como uma estratégia militar para a obtenção de objetivos políticos e manobra visando a destruição não apenas da pessoa vítima, mas também do que se considera inimigo. A extrema estigmatização atrelada à violência sexual faz com que muitas vítimas fiquem desamparadas, não tornando pública a violência que sofreram e não procurando a assistência médica, psicológica e jurídica necessária[5].
Atualmente, o Estatuto de Roma, instrumento que criou o Tribunal Penal Internacional permanente com sede em Haia, incluiu pela primeira vez como a) crime de guerra: qualquer forma de violência sexual que constitua um desrespeito grave às Convenções de Genebra de 1949 e b) crime contra a humanidade: a agressão sexual ou qualquer forma de violência no campo sexual de gravidade comparável, quando cometido no quadro de um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil. Ademais, a violação sexual pode ser reconhecida como genocídio por constituir ofensa grave à integridade física ou mental de membros de um grupo, desde que tal ato seja praticado com a intenção de destruir, no todo ou em parte, deste grupo nacional, étnico, racial ou religioso enquanto tal.
No Caso Akayesu, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda proferiu a primeira condenação de estupro como genocídio e crime contra a humanidade. Ao definir estupro, a Câmara de Julgamento do TPIR considerou o estupro como forma de agressão na qual seus elementos centrais não podem ser definidos a partir de uma definição mecânica de objetos ou partes do corpo.
Logo, o estupro pode ser usado com a finalidade de intimidação, humilhação, degradação, discriminação, punição, controle ou destruição de uma pessoa.
Segundo essa definição, o estupro é uma “invasão física de natureza sexual, cometido em face de uma pessoa em circunstâncias coercivas. A violência sexual, que inclui estupro, é considerada qualquer ato de natureza sexual cometido por uma pessoa sob circunstâncias que são coercivas”[6].
Essa definição de estupro contribui para o reconhecimento de que, em caso de violência sexual em contexto de desigualdade extrema, como a guerra, estes ambientes são tão coercitivos que inexiste a possibilidade de consentimento da vítima[7].
Assim, decerto que declarações como aquelas proferidas sobre o tour de blonde (sic) enojam em sua total falta de humanidade, mas, também, de maneira sutil, avigoram discursos e práticas que não mais cabem no mundo de hoje e para as quais, felizmente, o direito vem reforçando meios de enfrentar e combater.
Fonte: Portal Jota
[1] NAÇÕES UNIDAS – BRASIL. Guerra na Ucrânia: crescem relatos de violência sexual e tráfico humano. 12 abril de 2022. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/177461-guerra-na-ucrania-crescem-relatos-de-violencia-sexual-e-trafico-humano
[2] PEREIRA, Isabelle Dianne Gibson. Julgamento De Estupros como Crimes Internacionais: Análise dos Casos Furundžija E Akayesu (ICTY E ICTR). In: BOTTEGA, Clarissa; OLIVEIRA, Fabiano; OLIVEIRA, Mariana Gomes de; GUEDES, Maurício Pires (org.). Instituições e Políticas Públicas. Rio de Janeiro, Pembroke Collins, 2021.
[3] ASKIN, Kelly. Prosecuting Wartime Rape and Other Gender-Related Crimes under International Law: Extraordinary Advances, Enduring Obstacles. Berkeley Journal of International Law, Vol. 21, 2, 2003.
[4] MOURA, Samantha Nagle Cunha de. Estupro de mulheres como crime de guerra sob as perspectivas feministas. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas). Universidade Federal da Paraíba, 2016, p. 54-66.
[5] MOURA, Samantha Nagle Cunha de. Estupro de mulheres como crime de guerra sob as perspectivas feministas. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas). Universidade Federal da Paraíba, 2016, p. 55.
[6] INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA – ICTR. Prosecutor v. Jean-Paul Akayesu. Case n. ICTR-96-4-T. 2 set 1998. Disponível em: https://www.internationalcrimesdatabase.org/Case/50/Akayesu/#:~:text=On%202%20September%201998%2C%20Trial,ever%20trial%20before%20the%20Tribunal.
[7] MACKINNON, Catherine. The ICTR’s Legacy on Sexual Violence. New England Journal of International and Comparative Law, v. 14, n. 2, 2008, p. 103.
Isabelle Gibson – Advogada criminalista. Doutoranda em direito penal na UERJ. Mestre em ciências jurídicas pela PUC-Rio.
Thaís Pinhata – Advogada. Doutoranda e mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.